Publicado em 1891, Quincas Borba é muito mais do que um simples romance sobre herança e fortuna, é uma poderosa crítica social. Neste clássico, Machado de Assis desconstrói a moralidade da elite brasileira, retratando um país em transição política e cultural, da Monarquia à República.
Com Rubião, um ingênuo herdeiro do Humanitismo,acompanhamos a ascensão e a queda de um homem seduzido por promessas de poder, prestígio e amor.
Ao longo do artigo, você vai entender como o autor utiliza elementos como interesse, loucura, manipulação e filosofia, estruturados em uma narrativa fragmentada, metalinguística e sofisticada.
Também vamos analisar os personagens de Quincas Borba, o simbolismo do cão Quincas Borba e o significado da grande máxima “Ao vencedor, as batatas!”.
Continue lendo e descubra por que o livro Quincas Borba continua sendo tão atual e uma leitura essencial para quem deseja compreender as raízes da desigualdade e do cinismo na sociedade brasileira!
Índice
Contexto Literário e Histórico de Quincas Borba

Publicado em 1891, Quincas Borba ocupa um lugar de destaque entre as de Machado de Assis e na história do Realismo brasileiro. O romance se destaca por sua linguagem, estrutura sofisticada e crítica sutil à elite e aos valores do século XIX.
O realismo brasileiro
Quincas Borba faz parte do chamado Realismo brasileiro, embora Machado de Assis não seguisse o modelo europeu na sua literalidade.
Ao contrário de autores como Zola e Eça de Queirós, que apostaram em descrever a realidade em detalhes, Machado rejeita o detalhismo e aposta em um estilo de escrita voltado à ironia, subjetividade e a crítica.
Em vez de mostrar uma realidade neutra, Machado mostra os limites da representação, expondo a distância entre o que se vive e o que se narra.
O autor participa do Realismo quando aborda questões sociais e conflitos morais, mas se distancia do modelo tradicional ao usar a ironia como principal ferramenta narrativa.
A crítica social está presente em cada gesto, mas nunca de forma escancarada. Através do personagem de Rubião e da filosofia fictícia do livro, o Humanitismo, que zomba do darwinismo social, o escritor mostra como a elite brasileira reproduz ilusões de progresso e racionalidade, sem abandonar o seu egoísmo e sua vaidade.
A evolução da trilogia realista de Machado de Assis
O livro Quincas Borba é o segundo livro da chamada trilogia realista de Machado de Assis, que teve início com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e teve seu fim com Dom Casmurro (1899). Essa sequência demonstra uma evolução narrativa e temática:
- Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, temos uma estrutura narrativa fragmentada e um narrador que ironiza o próprio passado.
- Em Quincas Borba, o escritor adota uma estrutura mais linear, mas a crítica filosófica e social ainda está presente e está mais sofisticada.
- Em Dom Casmurro, a subjetividade e a dúvida alcançam seu auge, com um narrador obcecado.
No centro dessa trilogia está o conflito entre aparência e verdade, que em Quincas Borba se manifesta em Rubião, um homem ingênuo e iludido pelas idéias de progresso, mas que não compreende a crueldade da elite à qual tenta pertencer.
Rubião não representa o tipo social como os naturalistas. Ele é, acima de tudo, um personagem cheio de contradição, vítima das próprias ilusões e da falsidade que impregna o mundo ao seu redor.
A loucura que o consome no final do livro é sintoma de uma sociedade doente e que não sabe lidar com as promessas que ela mesma criou.
Pano de fundo político: da Monarquia à República
Embora Quincas Borba não trate diretamente de eventos históricos, como a Abolição da Escravidão (1888) ou a Proclamação da República (1889), o romance se passa na transição política do Brasil.
Publicado em um período de instabilidade política, o livro trata de forma sutil e graciosa a decadência da elite imperial e a falsa modernidade da nova República.
No livro o escritor retrata um Rio de Janeiro urbano e burguês, em que os personagens estão mais preocupados com aparências, dinheiro e prestígio social do que com qualquer ideia de progresso.
Rubião, novo-rico provinciano, tenta alcançar a mais alta posição na hierarquia social, mas acaba sendo explorado e descartado por personagens que representam os vícios da sociedade republicana.
A filosofia do Humanitismo, que justifica a dominação do mais forte sobre o mais fraco, ironiza as ideologias do darwinismo social e do positivismo, muito populares na época.
Com isso, o escritor expõe os discursos que legitimavam a exclusão social mesmo após o fim da escravidão.
A crítica não aparece em discursos diretos, mas nas situações, dos personagens e na forma como a narrativa quebra com as promessas modernas.
O fracasso de Rubião simboliza o fracasso do liberalismo e da República em oferecer uma verdadeira mudança social.
Quincas Borba Resumo

O livro Quincas Borba é um dos romances mais ricos da literatura brasileira. A obra acompanha a ascensão social e a queda de Rubião, herdeiro da filosofia do Humanitismo, e critica com ironia a lógica social, política e moral de uma elite vaidosa e decadente.
Apresentamos um resumo de Quincas Borba, detalhando os principais momentos e destacando os elementos mais importantes que fazem do livro uma crítica sutil à falsa modernidade republicana.
O início de Quincas Borba
A história começa em Barbacena, Minas Gerais. Rubião, um ex-professor primário, tornando-se herdeiro dos bens e do cão de Quincas Borba, um filósofo que defendia o Humanitismo, doutrina baseada na lógica da sobrevivência do mais forte.
Ao aceitar a herança, Rubião também assume a missão de cuidar do cachorro de Quincas Borba, o que simboliza a permanência do antigo amigo.
A ascensão social de Rubião
Com a fortuna herdada de Quincas Borba, Rubião se muda para o Rio de Janeiro e tenta fazer parte da elite. Lá, conhece Cristiano Palha e Sofia, sua esposa. Rubião então se apaixona por Sofia, mas é manipulado pelos dois.
A ingenuidade do personagem o torna presa fácil de aproveitadores, enquanto tenta corresponder a um status social que nunca lhe pertenceu de fato.
O Humanitismo a filosofia de Quincas Borba
A filosofia de Quincas Borba, o Humanitismo, prega que a vitória do mais forte justifica todas as perdas e sofrimentos e é expressa na famosa frase: “Ao vencedor, as batatas!”.
Mesmo que Rubião repita a grande máxima, ele nunca compreende verdadeiramente sua lógica cruel. Ele usa a doutrina como justificativa para seu novo lugar na sociedade, revelando uma combinação de vaidade, fragilidade e ausência de autocrítica.
Decadência psicológica e ruína
À medida que Rubião se envolve com Sofia e continua sendo explorado por Cristiano, sua saúde mental começa a se deteriorar. Ele sofre delírios, paranoias e ilusões de grandeza, enquanto sua fortuna acaba rapidamente.
Abandonado pelos antigos por todos, Rubião retorna a Barbacena pobre, isolado e mentalmente debilitado. No fim, o personagem só tem a companhia do cão Quincas Borba e o Humanitismo em seus delírios finais.
A importância do cão Quincas Borba
O cão de Quincas Borba é mais do que um simples animal de estimação, o cão representa a herança deixada por seu dono.
A exigência de que Rubião cuidasse dele “como a um ser humano” ironiza o apego a símbolos vazios de poder e lealdade, colocando em evidência o tom satírico do romance.
Principais momentos de Quincas Borba
- Enfermidade e o legado de Quincas Borba: Rubião cuida de Quincas Borba em seus últimos meses de vida. Com a morte do filósofo, torna-se seu herdeiro, incluindo o cão e a sua filosofia, o Humanitismo.
- Testamento e nova vida: Aceitando o testamento, Rubião se muda para o Rio de Janeiro em busca de prestígio e reconhecimento entre a elite.
- A chegada à Corte: Instalado no bairro de Botafogo, Rubião conhece Cristiano Palha e Sofia, casal que se aproveita de sua boa-fé para explorá-lo.
- O amor não correspondido: Rubião se apaixona por Sofia, mas ela nunca corresponde. E a sua paixão é usada como ferramenta de manipulação.
- A loucura de Rubião: Com o passar do tempo, o protagonista apresenta sinais de alienação mental. Ele acredita ser imperador e passa a agir com delírios de grandeza.
- Perda e abandono: Rubião perde tudo em maus negócios e é abandonado por todos. Sofia e Palha desaparecem de sua vida.
- Uma morte solitária: De volta a Barbacena, Rubião morre sozinho, repetindo a máxima do Humanitismo e sendo acompanhado apenas pelo cão de Quincas Borba.
Personagens de Quincas Borba

O livro reúne um conjunto de personagens que representam muito mais do que indivíduos isolados, eles representam ideias e críticas à sociedade brasileira do século XIX.
Confira os personagens de Quincas Borba e uma análise de seus papéis simbólicos, funções e relações com a filosofia do Humanitismo.
O filósofo Quincas Borba
Personagem já conhecido de Memórias Póstumas de Brás Cubas, aparece no livro como o ponto de partida da trama. Quincas Borba é excêntrico e responsável por formular o Humanitismo.
O filósofo é usado para criticar, com ironia, filosofias que legitimam a crueldade social sob o olhar da racionalidade, como o darwinismo social e o positivismo.
A sua morte no início da história não encerra sua presença, que continua viva através do cão e da filosofia passada para Rubião.
O cão Quincas Borba
O cão Quincas Borba vai além de um simples animal, ele representa a herança filosófica e afetiva deixada a Rubião. A exigência de que o herdeiro cuide dele como a um ser humano simboliza a fidelidade à autoridade, mesmo quando sendo um absurdo.
O cão é o único que acompanha Rubião do topo ao fundo do poço, e sua morte que acontece ao mesmo tempo à do protagonista reforça o tom fatalista do romance.
Rubião
Protagonista da história, Rubião é quem herda a fortuna e, em seguida, decide se mudar para o Rio de Janeiro. A sua história mostra a ilusão da ascensão social no Brasil imperial, pois ele acreditava que o dinheiro e suas boas intenções bastavam para ser aceito.
O personagem representa o homem comum seduzido pelo falso progresso. Sua paixão frustrada por Sofia, a manipulação dos Palha e a deterioração mental resultam em sua ruína.
A loucura final de Rubião mostra a queda de um sujeito que absorve valores dos quais não compreende.
Sofia
Sofia é inteligente, elegante, culta e sedutora, é uma das personagens femininas mais marcantes da literatura de Machado de Assis. É a personificação da ideia de civilização, mas, por trás de toda a sua aparência refinada, ela esconde frieza e ambição.
Ela manipula Rubião com gestos e sentimentalismo, mas sem nunca se comprometer. Ela encarna a hipocrisia e a dissimulação de uma elite que sabe jogar com as aparências para manter o poder.
Cristiano Palha
Cristiano Palha é marido de Sofia e um homem de negócios: prático, racional e sem escrúpulos. Sempre educado, usa sua aparência de amigo para explorar Rubião financeiramente.
Ele representa a manipulação social e a racionalidade instrumental, valores estes que se apoiam no Humanitismo de forma disfarçada.
A sua relação com Sofia é de uma cumplicidade silenciosa, ele permite que a esposa seduza e iluda Rubião, desde que isso lhe renda vantagens.
Maria Benedita
Prima de Sofia, Maria Benedita é uma jovem do interior e era sutilmente usada como peça no grande jogo da elite, no começo foi pensada como possível esposa para Rubião, mas acaba se casando à força com Carlos Maria.
A personagem revela os conflitos entre a tradição e a modernidade, interior e capital, submissão e desejo. Ao contrário de Sofia, é mais honesta, mas também mais vulnerável às manipulações sociais.
Personagens Secundários de Quincas Borba
- Carlos Maria: objeto de ciúmes de Rubião e possível amante de Sofia. Sua presença mostra o teatro das vaidades e a superficialidade das relações da elite.
- Camacho: Jornalista oportunista, apoia Rubião enquanto tem vantagens. Quando este perde tudo, Camacho o abandona sem remorso
- D. Fernanda: Simboliza a caridade e condescendência, oferece compaixão a Rubião no final da vida, mas nunca uma solidariedade real ou ação concreta.
- Jean, o espanhol, e os criados: São como um espelho que reflete a decadência de Rubião. Fingem respeito enquanto zombam dele pelas costas.
A importância dos personagens de Quincas Borba
Cada um dos personagens de Quincas Borba não só cumpre uma função na história, mas também representam uma crítica às ideias do Brasil do século XIX.
Através deles, Machado de Assis mostra os limites da racionalidade, as contradições e a fragilidade da moral.
A riqueza do simbolismo desses personagens transforma o livro em uma verdadeira dissecação do comportamento humano em tempos de mudança.
Filosofia do Humanitismo em Quincas Borba

O Humanitismo, filosofia criada por Quincas Borba, é um dos pilares do livro. A filosofia é mais do que uma simples invenção cômica, a teoria assume o papel de crítica profunda às ideologias que sustentavam o Brasil do século XIX.
Com o lema “Ao vencedor, as batatas”, a filosofia é uma mistura de cinismo, ironia e lógica perversa, tudo isso em um discurso de falsa racionalidade.
O que significa o lema “Ao vencedor, as batatas”
A famosa frase surge a partir de uma história contada no livro: dois viajantes famintos encontram apenas uma batata. Como os dois têm direito à vida, apenas um poderá comer. Se um deles matar o outro, o sobrevivente “vence” e come a batata. Simples assim.
Nessa lógica, a morte do perdedor não importa, porque a vitória seria uma consequência natural da luta pela sobrevivência. Essa frase resumiria a lei da vida segundo o Humanitismo.
O escritor usa essa filosofia absurda para zombar de filosofias modernas como o darwinismo social, o positivismo e o utilitarismo, correntes essas que eram muito influentes no Brasil da época.
A elite brasileira, quando adotava os ideais europeus sem refletir sobre sua realidade local, torna legítima a desigualdade, a violência e a marginalização como se fossem algo natural ou cientificamente justificáveis.
Assim o Humanitismo é uma alegoria da brutalidade presente na sociedade brasileira, que finge ser civilizada e em rumo ao progresso. O escritor não ataca apenas a teoria em si, mas a forma como ela é usada.
Rubião e o fracasso da filosofia na prática
Rubião, não entende realmente a filosofia que fica repetindo. Ele adota o lema “ao vencedor, as batatas” assim como a fortuna e a filosofia de Quincas Borba, mas não percebe que nunca será visto como um “vencedor” pela elite carioca.
Ele imita o comportamento e os valores, mas acaba sendo usado, manipulado e abandonado.
O fim do personagem mostra como a lógica do Humanitismo funciona na prática: vence quem manipula o outro e não quem acredita sinceramente nas regras do jogo.
Mesmo sendo uma filosofia fictícia, o Humanitismo continua sendo atual porque reflete o funcionamento de sistemas sociais baseados na competição, na desigualdade e na indiferença com o sofrimento alheio.
Ao refletir essa lógica social, Quincas Borba se consolida como um livro filosófico, político e profundamente humano.
Temas abordados em Quincas Borba

O livro Quincas Borba, de Machado de Assis, é mais do que uma história sobre herança e fortuna. A obra mergulha nas complexidades das relações humanas e desnuda, com ironia e graça, temas relacionados com interesse, amor, poder e loucura.
A trajetória de Rubião revela como esses elementos se relacionam em uma sociedade marcada pela hipocrisia, pelas aparências e pela brutalidade social.
O jogo de interesses e manipulação
Ao herdar a riqueza e o cão de Quincas Borba, Rubião sai de uma vida simples em Barbacena para viver no centro da elite carioca.
A nova posição social, não o protege da manipulação emocional e exploração financeira. Personagens como Sofia e Cristiano Palha se aproximam dele apenas para tirar vantagem.
O interesse é como uma peça chave nas relações sociais do livro: os vínculos não se baseiam em afeto ou amizade, mas em conveniência e ambição.
Rubião é ingênuo e generoso, ele não percebe que está cercado por oportunistas que o manipulam até a sua completa ruína.
Amor como ilusão
A relação entre Rubião e Sofia é caracterizada por um amor unilateral. Rubião idealiza Sofia, acreditando em um romance, mas ela apenas alimenta essa ilusão para obter benefícios dele.
O amor, em Quincas Borba, não é romântico e muito menos puro. É usado como ferramenta de dominação e manipulação. A paixão de Rubião mostra como as emoções também podem ser usadas.
Poder simbólico
Apesar de ter dinheiro, Rubião nunca possui poder de verdade. O personagem é constantemente manipulado pelos outros. O poder em Quincas Borba não está no dinheiro em si, mas na habilidade de encenar, controlar e persuadir.
Cristiano Palha representa esse poder que se manifesta através da persuasão e do oportunismo. Rubião, desajeitado e frágil, não consegue sobreviver nesse ambiente competitivo.
A loucura de Rubião
A progressiva perda da razão de Rubião é o núcleo dramático do livro. A sua loucura surge do confronto entre sua visão ingênua de mundo e a crueldade do espaço social que ele tenta fazer parte. À medida que é traído, ridicularizado e isolado, ele perde o senso da realidade.
Aqui a loucura não deve ser vista apenas como uma condição clínica, mas como uma metáfora do indivíduo moderno diante de uma sociedade esvazia e sem valores.
Quando fantasia ser Napoleão III, Rubião personifica o poder e o delírio coletivo.
A crítica social de Quincas Borba
O livro é, do início ao fim, uma obra repleta por uma crítica social sutil e profunda. Machado de Assis desnuda a falsa moralidade da sociedade brasileira, que se diz civilizada, mas atua com oportunismo, vaidade e crueldade.
A filosofia de Quincas Borba, o Humanitismo, com seu lema “ao vencedor, as batatas”, expõe a lógica da competição e da desigualdade, apresentada como se fosse natural.
A história mostra que os valores liberais e positivistas da época são usados para mascarar a manutenção da estrutura social vigente. Rubião, ao tentar seguir essas ideias, é destruído por elas.
Ele representa a falência do projeto de modernidade no Brasil, onde progresso e razão não passam de discursos vazios.
No fim, Rubião enlouquece, mas é o único a enxergar, ainda que tardiamente, o absurdo do mundo. A sua loucura é, ao mesmo tempo, um grito de verdade.
Estilo e Estrutura Narrativa de Quincas Borba

Quincas Borba é uma das obras mais importantes do Realismo brasileiro, mesmo que não siga o modelo tradicional do gênero.
Em vez de apenas reproduzir a realidade, Machado de Assis altera a própria maneira de narrar, usando um estilo sofisticado, capítulos curtos, ironia e um narrador que desafia o leitor o tempo inteiro.
Narrador e sua presença crítica e irônica
O livro é narrado por um narrador que sabe de tudo e heterodiegético, ou seja, está fora da história, mas sabe tudo sobre os personagens e os acontecimentos.
O narrador observa, analisa e até mesmo julga as ações de Rubião com distanciamento irônico, mostrando as suas fraquezas e contradições.
Ele não só conta os fatos, mas oferece interpretações, faz perguntas ao leitor e até faz comentários sarcásticos.
A linguagem usada pelo narrador cria uma falsa intimidade com o leitor. Ele simula uma conversa informal, mas esconde um controle completo da narrativa.
O narrador manipula o ritmo da história, omite informações, antecipa eventos e até distorce percepções para gerar tensão ou ironia. Com isso, o leitor se torna participante da crítica que o livro desenvolve.
Metalinguagem em Quincas Borba
Em Quincas Borba, o narrador não esconde os bastidores da ficção, pelo contrário, nos conta sobre suas escolhas, comenta sobre o enredo, critica os personagens e até revela os truques do próprio texto. Isso é o que chamamos de metalinguagem: quando o livro fala sobre si mesmo.
Esse recurso cria um efeito de distanciamento crítico, o leitor é sempre lembrado de que está diante de uma construção literária, e não uma representação fiel da realidade.
Quando quebra as expectativas do realismo tradicional, Machado de Assis ironiza a ideia de que a literatura pode representar o mundo de forma neutra e objetiva.
O narrador, por exemplo, interrompe a história para fazer comentários sobre escolhas de palavras, justificar omissões, prever o futuro ou chamar atenção para a reação do leitor.
Com isso, o livro ganha um estilo próprio, transformando cada capítulo em um exercício de reflexão sobre a linguagem e sobre os limites da representação.
Capítulos curtos
Uma das características mais evidentes em Quincas Borba é a sua estrutura em capítulos curtos e quebrados. Essa forma atende a três funções principais:
- Ritmo ágil e dinâmico, ideal para a publicação em folhetim e para manter o interesse do leitor;
- Liberdade na estrutura, permitindo alternar rapidamente entre cenas, pensamentos, ironias e reflexões filosóficas;
- Precisão crítica, já que cada capítulo pode se concentrar em uma questão psicológica ou social sem prejudicar a coesão da trama.
Os capítulos funcionam quase como cenas independentes, com começo, meio e fim. Muitas das vezes, terminam com frases incertas, comentários ou mudanças radicais no foco, o que quebra a continuidade da narrativa e reforça o estranhamento.
Dessa forma, somos convidados a refletir constantemente sobre o que lê e não apenas seguir a história de forma passiva.
Além disso, a fragmentação imita a fala e o pensamento, criando um ritmo que parece espontâneo, mas que na verdade é calculado.
Essa estratégia intensifica o tom de conversa, nos aproxima e ao mesmo tempo muda as convenções do romance realista, que valorizava capítulos longos, descrições detalhadas e um narrador invisível.
Machado de Assis usa esses recursos, narrador que sabe de tudo, metalinguagem e capítulos curtos, para construir a base de uma crítica sutil e poderosa. Em vez de ser um retrato fiel do mundo, Quincas Borba o interpreta, ironiza e desmonta.
Crítica e Legado de Quincas Borba

Mesmo que hoje o livro seja extremamente reconhecido como uma das maiores obras do Realismo brasileiro, Quincas Borba teve uma recepção crítica inicial mais discreta do que as outras obras da trilogia: Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro.
Com o passar do tempo, o romance trouxe à tona a sua profundidade filosófica, complexidade narrativa e atualidade crítica, elementos estes que conquistaram leitores e estudiosos.
Um romance à frente de seu tempo
No final do século XIX, quando foi lançado, Quincas Borba não causou muito impacto. Isso aconteceu porque o livro exigia do leitor uma atenção às ironias, entrelinhas e incerteza moral, e essa exigência não foi entendida por muitos dos leitores da época.
O livro possui um um narrador irônico e onisciente, uma filosofia de mentira (o Humanitismo), personagens complexos e uma crítica sutil.
Essas particularidades tornaram o romance menos acessível ao leitor comum, que estava mais acostumado a histórias mais convencionais ou sentimentais.
Inicialmente o livro foi entendido apenas por leitores que tinham um maior preparo. Era preciso que o leitor desconfiasse da objetividade do narrador para entender a complexidade da história.
Uma interpretação literal poderia levar o leitor a interpretar mal ou superficialmente o que o escritor estava propondo, uma sátira da sociedade.
Mesmo assim, o romance já demonstrava, em suas primeiras críticas, a continuidade do estilo de Machado de Assis, assinalado por uma escrita elegante, estrutura disruptiva e visão crítica.
Críticas ao longo do tempo
Com o avanço dos estudos literários no século XX, Quincas Borba passou a ser lido segundo novas perspectivas.
A teoria da Estética da Recepção mostrou que a leitura de um livro muda de acordo com o contexto histórico e o repertório de quem lê, e o livro começou a ser mais valorizado justamente por ativar diferentes interpretações ao longo do tempo.
Os estudiosos perceberam que a decadência de Rubião não é o único foco da narrativa. A verdadeira crítica está no Humanitismo. Também está no modo como o narrador manipula, distorce ou omite informações, nos desafiando a ler as entrelinhas.
A crítica mais recente valoriza o romance por sua sofisticação, complexidade filosófica e por antecipar temas modernos, como:
- A fragilidade da identidade individual;
- A artificialidade da linguagem;
- A instabilidade dos sentidos narrativos.
Hoje, Quincas Borba é visto não apenas como um elo entre Memórias Póstumas e Dom Casmurro, mas como uma obra autônoma e provocadora, capaz de dialogar com questões que ainda são atuais, como a alienação social, manipulação e desigualdade.
A sua recepção crítica evoluiu de forma semelhante à sua proposta: lenta, reflexiva e cada vez mais valorizada com o tempo.
Com essa obra, Machado de Assis manteve a sua posição como um dos maiores escritores da língua portuguesa, e Quincas Borba continua sendo essencial para entender não só a literatura brasileira, mas também os mecanismos invisíveis de poder, loucura e desigualdade que ainda marcam a nossa sociedade.
Conclusão

Mais de um século após sua publicação, Quincas Borba continua sendo uma das obras mais importantes da literatura brasileira.
Com uma crítica sutil e com estilo, Machado de Assis denuncia as contradições da modernidade, expondo valores como o progresso, o liberalismo e a racionalidade usados para manter uma estrutura social injusta.
Rubião, ao tentar ascender na elite carioca, torna-se vítima de sua ingenuidade, da manipulação alheia e da lógica brutal do Humanitismo.
A obra, com sua narrativa irônica, personagens simbólicos e estrutura incomum, continua desafiando leitores a repensarem o Brasil e sobre a sua moralidade.
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Referências Bibliográficas
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